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Aberta a temporada para os “caçadores de terra” nos EUA

 

Bettina Barros, de Washington, San Francisco, Miami e São Paulo

A guerra por áreas disponíveis nos Estados Unidos tem criado um exército de “caçadores” de terras que tentam se antecipar à especulação imobiliária que ronda os bolsões agrícolas do país. Agrupados em organizações sem fins lucrativos, que por vezes funcionam como um braço invisível do governo, esses economistas, advogados, biólogos e agrônomos mapeiam as fazendas em perigo potencial para fazer o que sabem de melhor: ofertas hostis.

Eles fazem parte dos chamados “land trusts” americanos, e estão no centro do combate para a preservação de áreas rurais consideradas estratégicas para o país. A corrida contra o tempo desses profissionais é identificar e chegar às propriedades antes de outros compradores. A maior concorrente são as construtoras.

A manutenção dos territórios agrícolas virou uma questão de Estado em algumas regiões do país. Milhões de hectares de lavouras sumiram do mapa nas últimas décadas, na maior parte dos casos por pressão do crescimento das manchas urbanas e da consequente valorização da terra que esse movimento provoca.

Tratam-se de centenas de pequenos e médios produtores cujas propriedades não se enquadram na “Farm Bill” – a afamada lei de subsídio agrícola dos EUA voltada para commodities como milho, trigo e soja, geralmente ligadas a grandes corporações.

A disputa pela terra tem sido feroz. Entre 1992 e 1997, os últimos dados oficiais disponíveis, 11 milhões de acres (4,5 milhões de hectares) foram convertidos em condomínios residenciais, shoppings e estacionamentos. Mais da metade dessa área era agrícola. É como se toda a produção de feijão, trigo e algodão do Brasil fosse varrida pelo asfalto. Ou o Espírito Santo inteiro.

De lá pra cá, a conversão agrícola manteve o ritmo. Entre 1997 e 2002, estima-se que a média de conversão de lavouras em zonas urbanas foi de 1,1 milhão de hectares por ano. O último censo agrícola, divulgado em fevereiro, mostrou retração de 379,7 milhões de hectares em fazendas em 2002 para 373,2 milhões de hectares em 2007. E os especialistas advertem: nem a crise econômica modificará essa tendência histórica – tão logo ela se vá, a conversão será retomada.

“A Califórnia é o Estado americano que produz o maior número de culturas – de amêndoas a uvas. Os demais concentram-se em duas ou três. Estamos entre os dois ou três maiores produtores de leite. Mas a pressão pela conversão de terras agrícolas tem sido muito forte por aqui”, diz Jonathan London, doutor pela UC Davis, uma das mais respeitadas universidades da Califórnia.

É na Califórnia que a situação é mais emergente, dada a rápida taxa de crescimento populacional. Mas a pressão urbana sobre as fazendas agrícolas é bastante forte também no Texas, em Indiana, Illinois e Wisconsin.

A solução para o problema que tem gerado fortes debates no país, porém, está na própria legislação americana. Ela está nos “agricultural conservation easements”, instrumento jurídico que representa o direito de se utilizar a terra de terceiros para um fim específico. É uma ferramenta poderosa, sem equivalente no Brasil, que tem sido utilizada pelos “land trusts” para garantir que as fazendas permaneçam como tal – e que os fazendeiros continuem a ser só fazendeiros, evitando migrações indesejadas.

A base desse trabalho está em um direito tão intrínseco nos EUA quanto o ir e vir: a propriedade privada. “Nos EUA, os fazendeiros podem fazer o que bem quiserem com a sua propriedade – cultivar, explorar seus recursos naturais, alugar e até vender o direito que têm de construir na sua terra, que é o nos interessa. Por isso a importância de chegarmos antes”, afirma Alvaro Gutierrez, desenvolvedor de projetos de conservação pelo Trust for Public Land, de Miami.

Com longa atuação em questões ambientais, Gutierrez é um dos “caçadores” de terras que percorre a região em busca de áreas de interesse de preservação. Sem o instrumento legal, diz, o poder de ação dos “trusts” seria infinitamente mais restrito.

A batalha perdida dos 4,5 milhões de hectares para o desenvolvimento urbano não sucumbiu o setor rural à derrota total. Com os “easements”, profissionais como Gutierrez conseguiram evitar a mudança do uso de solo em áreas agrícolas em 2,2 milhões de hectares, segundo a American Farmland Trust (AFT), organização em Washington que observa com lupa o problema.

O “easement” é um acordo voluntário e perpétuo no qual o proprietário pode vender ou doar o direto de desenvolvimento em parte de sua terra a organizações de conservação privadas (os “land trusts”) ou agentes públicos enquadrados no Uniform Conservation Easement Act, que serve de modelo para as legislações estaduais. Hoje, 27 Estados têm legislação neste assunto.

A identificação das áreas quase sempre parte dos governos locais, que podem agir por conta própria ou acionar os “land trusts” para ajudá-los nos trâmites do negócio. “Nós estruturamos as transações para facilitar o processo e alinhar os interesses de proprietários que querem vender sua terra e as necessidades dos órgãos públicos que querem adquiri-las”, explica Gutierrez.

Foi assim com Paul Sanders, produtor de frutas e hortaliças do condado de Beaufort, na Carolina do Sul, que há dois anos vendeu ao Trust for Public Land o direito de desenvolvimento de 65 dos 147 hectares de sua fazenda. “Vendi porque precisava de dinheiro, mas também porque queria ver a sobrevivência da minha fazenda”, diz Sanders. A venda lhe rendeu US$ 1,6 milhão.

Sander continua dono da propriedade, mas ao vender o desenvolvimento de parte dela ao condado abriu mão do seu direito de levantar novas instalações.

“Muitos fazendeiros que percorrem este mesmo caminho utilizam o dinheiro para fazer melhorias em sua área produtiva”, afirma Don Buckloh, da American Farmland Trust, de Washington. “O preço oferecido é sempre de mercado, avaliado por uma consultoria independente”.

Quem opta por fazer uma doação do direito de desenvolvimento desfruta de vantagens fiscais. Além da redução no Imposto Territorial Rural (ITR), que varia de Estado para Estado, o proprietário deduz do Imposto de Renda o valor equivalente à terra doada.

As terras agrícolas são cobiçadas pelo setor imobiliário porque tendem a ser planas, com boa drenagem e, em geral, de custo mais acessível para construtoras que para produtores. Os especialistas da American Farmland Trust argumentam que a conversão de terras tem sido muito maior do que o necessário para a construção de residências. E são as melhores terras – as mais férteis – que estão desaparecendo com velocidade brutal.

A luz amarela acendeu em 1981, quando o governo americano realizou o “Natural Agricultural Land Study” para mapear o estado do campo no país. “Ficamos alarmados”, lembra Buckloh, da AFT. “A partir daí, os “easements” saíram do papel”.

Para esses defensores do campo, a preservação das fazendas é vital por motivos que tangem desde segurança alimentar a segurança do trabalho. Celeiro do mundo, os EUA embarcam o equivalente a US$ 115 bilhões por ano em produtos agrícolas. Mas a atividade rural é também a base econômica de um sem-número de comunidades do país. A produção de alimentos emprega 17% da força de trabalho americana (23 milhões de pessoas) e contribui com quase US$ 1 trilhão da economia nacional.

“Com o crescimento exponencial da população mundial e a expansão dos mercados globais, manter as fazendas nos Estados Unidos é um investimento prudente para o abastecimento global de alimentos e uma oportunidade econômica”, defende o American Farmland Trust.

Apesar da importância para o país, as fazendas estão ameaçadas por planos de desenvolvimento fracos que estão provocando a conversão das terras. O Serviço de Pesquisa Econômica do Departamento de Agricultura americano desenvolveu um ranking para classificar os 3.141 condados do país segundo o grau de influência urbana que incide sobre cada um. A pesquisa apontou que as fazendas dos 1.210 condados com maior pressão urbana produzem simplesmente 63% dos lácteos e 86% das frutas e verduras do país.

A jornalista viajou a convite do Departamento de Estado dos EUA.

Fonte: Valor Econômico (27/04).