Autor(es): Fernando Gabeira – O Estado de S. Paulo – 13/09/2013
Passei a Semana da Pátria em Brasília. De segunda a domingo, veio à lembrança a primeira frase do livro A Cidade e os Cachorros, de Mario Vargas Llosa: “Quando foi que o Peru se f…?”. Nessa mesma semana, o cineasta Paolo Sorrentino lançava na Itália o filme A Grande Beleza, investigando também como seu país de tantas glórias e talentos entrou em decadência e mergulhou na era Berlusconi.
O perfume do 7 de Setembro foi o gás de pimenta. A cisão Parlamento-sociedade repercutiu de forma profunda num setor da juventude de Brasília. Eles se sentem explorados por uma casta que despreza o País e vagam pela cidade semideserta, alguns com o rosto coberto, outros de cara limpa. Um formidável aparato, com 4.500 soldados, tomou conta de Brasília e garantiu a segurança no Estádio Mané Garrincha, onde o Brasil esmagou a Austrália por 6 a 0. Interessante ver na Esplanada um cartaz dizendo “Hospital Nacional Mané Garrincha” e ver a Cavalaria marchando em tomo do estádio de futebol, enquanto centenas de torcedores vestidos de amarelo chegavam meio desconfiados, olhando em tomo para ver se haveria ou não confrontos entre manifestantes e polícia.
Não posso afirmar que as manifestações de junho se teriam mantido se não houvesse um clima de violência. Ondas populares crescem e decrescem como o movimento das marés. É possível afirmar, no entanto, que a violência no refluxo do movimento não conseguiu despertá-lo de novo, indicando que esse não é o método capaz de trazê-lo de novo às ruas.
Durante toda a semana o Congresso foi acossado por manifestantes. A maioria deles tratava de temas corporativos. Mas o perfume de gás de pimenta não distingue atores e invade de novo a atmosfera.
Dentro do Congresso encenou-se a vitória do voto aberto, uma encenação para acalmar os ânimos, e ao mesmo tempo se discutiu mais uma medida provisória, chamada 615, cheia de pen-duricalhos introduzidos pelo relator, senador Gim Argello. Era tão escandaloso que os deputados se referiam a ela como árvore de Natal. O texto do governo falava de aj uda à produção da cana-de-açúcar. Ârgello introduziu, entre coisas, reivindicações de agentes penitenciários e até legalização de temas no Distrito Federal, sua especialidade.
É evidente que o Congresso vive unia realidade separada. Mas no 7 de Setembro íicou bem claro que a separação é garantida pela polícia, é o muro humano de soldados que impede o Congresso brasileiro de ser invadido e fechado. Quando instituições democráticas só conseguem sustentar-se com forte presença policial, talvez seja o momento de explicar, como Llosa, quando é que o Brasil se estrepou.
O governo tem influência na queda do Congresso por supor, na sua tática, que quanto mais degradado for o ambiente, mais chance terá de atuar sem obstáculos. Mas esse é apenas um aspecto. Os deputados, em grande parte, optaram pela realidade separada. Estão envolvidos em seus próprios interesses e não percebem o suicídio institucional, ao contrário, fazem com celeridade a marcha da insensatez. Para muita gente, o Congresso simplesmente acabou. Para alguns, ainda é possível invadi-lo e levar o plenário para a Penitenciária da Papuda, onde podem prosseguir suas melancólicas discussões.
Caminhando pelo gramado da Esplanada era possível ouvir a voz de Dilma Rousseff saindo das caixas de som, reafirmando seu programa Mais Médicos, que lhe valeu alguma simpatia pela maneira como foi combatido. Dilma ainda não sabia que o domingo lhe traria nova oportunidade de marketing político: a Petrobrás foi espionada, segundo os documentos de Edward Snowden revelados pelo jornalista Glenn Greenwald. De novo a Pátria, coitadinha, espionada pelos cinco poderosos olhos que compartilham as informações produzidas pelos americanos. De novo um tema que dá votos, e lá vai a presidente dedicar-se a ele, na ONU, nas coletivas, nos encontros bilaterais: fomos espionados, que horror.
Dizem que Dilma tinha um telefone protegido, mas não o usava. Não posso confirmar isso. Mas tenho razões de sobra para afirmar que o govemo do PT é um pobre demagogo, diante da complexidade do tema.
Como deputado de oposição a Lula, eu não ia ao Palácio do Planalto. Mas há cerca de cinco anos pedi uma audiência com o general Jorge Félix, chefe Gabinete de Segurança Institucional, especificamente para alertar sobre a necessidade de desenvolver mecanismos de proteção, inclusive a criptografia. O general recebeu-me gentilmente, como o fez quando fui defender a tese de que não deveríamos formar agentes da Abin em Cuba. E informou que havia um trabalho de criptografia em curso, envolvendo cientistas e técnicos brasileiros que vivem aqui e no exterior. Se tivéssemos mesmo um projeto adequado, os estragos seriam menores em caso de espionagem. Indivíduos, leio na reportagem da Piauí sobre a documentarista Laura Petras, protegem a privacidade de seus dados. Por que não países, com muito mais recursos?
A verdade é que no fundo não havia interesse algum em proteger informações. É muito melhor denunciar o ataque aos segredos nacionais, recriai” a ideia do inimigo externo, faturar votos: o que importa é continuar no poder, embora o poder já não se exerça da forma clássica, mas em sintonia com um Congresso de picaretas prontos para vender almas e emendas.
Na manhã do 7 de Setembro vi um cartaz: “Vândalos são os políticos”. E percebi que o vandalismo é hoje um traço decisivo no debate político nacional. Parece ter-se esgotado o estoque de argumentos. Os vândalos eram um povo germânico que devastou o sul da Europa e o noite da África. No dicionário, vândalos destroem monumentos e objetos respeitáveis, são inimigos das aites e da ciência. Na versão nativa, monumentos, quase sempre, são agências bancárias. E as aites e a ciência são a busca da verdade que o Congresso teima em massacrar, como se fosse o time da Austrália que surramos impiedosamente, ao som de helicópteros cruzando os céus e do tropel da Cavalaria em torno do estádio.
Como chegamos a tal ponto?